segunda-feira, 10 de julho de 2023

 O MENINO RHAVI


Era mais uma noite que eu tinha de enfrentar espasmos horripilantes e insônias eternas. Porém, naquela ocasião os meus sentidos estavam mais alertas, irregulares, estufados. Deitado na cama, eu sentia o pano de algodão da minha camisa pesar no peito como chumbo. A sensação aumentou e a pressão no tórax fez crescer um medo generalizado por todo o corpo, causando-me atraente vontade de estrangular o pescoço e esmurrar o estômago na ânsia de empreender imediata fuga.  Vez ou outra, assustava-me com as etiquetas no avesso das roupas em razão do contato semelhante à de bichos peçonhentos prestes a investir garras afiadas e letais contra mim.

O coração arrepiava-se e pulsava em cada membro no momento em que eu tocava os objetos ao redor, pois a pele estava amplificada de modo que os batimentos cardíacos manifestavam-se atrás da nuca, costas, braços e pernas, sobre os lençóis amarrotados. Suores gelados me haviam na testa e muita dificuldade para respirar. Parei por instantes longos à espera de que o ar chegasse aos pulmões em tempo de tolerar sua ausência, contudo, na tentativa de conduzi-lo, um nervosismo visceral estreitava sua passagem e estremecia as costelas que se abriam afobadas. As pernas tremulavam, quando percebi que algo prestava atenção em mim, silenciosamente, de alguma região ainda oculta. 

Levantei-me agoniado, revistei em volta do quarto e nada vi. Não notei a presença de mais ninguém entre aquelas quatro paredes azuis, agora mais largas do que nunca. A aflição de estar sob a vigilância de alguém era incessante, a inquietação ganhava volume em mim. Em reação, abri a porta de trás da casa, à primeira vista pensei ter visto uma pessoa, várias, não sei; então, aproximei-me vagarosamente com o punhal em mãos, encorajado pela adrenalina do medo, mas tratava-se apenas de uma impressão equivocada. 

A bem da verdade, minha cabeça atraía-se em degradar as imagens normais e sóbrias das coisas para recompor-se inspirada na feiúra de suas deformidades. Como galhos que se curvam em direção à luz do sol, inclinava-me às sombras salientes do quintal.

Como sempre, eu estava sozinho ali. Novamente, a Mãe havia ido aos festejos noturnos.  Desde a infância ela  saía aos botequins e abandonava-me trancafiado em casa; campo de concentração noturna, posto que o precário abrigo torturava-me com a visão de desenhos demoníacos de pessoas disformes nas paredes, desenhadas pelas manchas das infiltrações das fortes chuvas de inverno.  Do canto do casebre, eu chorava ao som de panelas no assoalho, grilos, sapos e lesmas escalando as tábuas miseráveis, agredidas pelo tempo.


/////


Certa vez chegara, longe de mim por madrugadas imensas, e obrigara-me a dançar com ela, gozando sem pudor de sua autoridade materna inquestionável.  Agarrada em ombros magros, quis-me em seu mundo à medida em que ela descarregara a bebida alcoólica por toda a pele ao entregar-me seu afeto, decretando-me que respirasse a catinga tóxica de seu suor embriagado. No pêndulo dos corpos, ela apoiara a cabeça ao lado da minha e dissera-me, cambaleante, -  “vai dançar comigo até quando eu quiser! “. 

Encarcerado na maioria do tempo, eu saía passando as mãos em tudo que via pela frente nas raras vezes em que escapava do cativeiro materno. Nunca quis machucar ninguém com o toque, simplesmente apertava as outras crianças de um jeito proporcional à capacidade de constatá-las. 

Eu e a Mãe vivíamos numa casa idosa, de paredes azuis, acobertada por plantas trepadeiras. Um dia, pela manhã, ela esquecera o portão aberto, oportunidade única para eu ir lá fora. Sem hesitação, eu correra depressa em direção à rua em passos aleatórios e braços desajeitados, sem ter em mente um rumo a que buscar. Eu não ia ao encontro do mundo, este que vinha a mim como se eu fosse alvo fértil de suas vibrações.  

Eu herdara o exílio para onde vão e crescem as crianças zarolhas, anãs e de colunas curvilíneas, quais sejam os muquifos domésticos, bem como, os continentes mirabolantes e inexploráveis das localidades interioranas dos seres. Lá, a paisagem não era filtrada para chegar suportável às pessoas, como também, não haviam, nos vales em que eu perambulava, noções básicas sobre o sentido da vida. Existiam, imponentes, os órgãos do mundo avistados por mim através das falanges dos dedos: a crosta da Terra era a minha pele; as árvores, meus pelos finos e grossos; o coração, magma do Planeta; os Rios, as veias do corpo.

Em regresso ao quarto, minhas mãos foram cumprimentadas, repentinamente, por formigamentos espinhosos que percorreram até o peito e logo uma cãibra  medonha apossou-se de minha cabeça. Fiquei ali paralisado com a imobilização dos pés. Tentei agarrar em qualquer coisa, mas não conseguia desencadear nenhuma ação. O comichão no peito proibiu meus movimentos, oferecendo-me ao carrasco, à espreita; talvez fora, talvez dentro, não sei. Precisava procurá-lo e encerrar de uma vez por todas a sensação de ser alvo de certa coisa muito horrorosa. 

Aos poucos a arapuca foi desamarrando as forças do corpo e arrecadando-as contra mim mesmo. Por causa disso, a pele coçava sem parar, convocando as unhas para habitarem-na e explorarem seus relevos orgânicos. Revolvi, em dor aguda, as camadas da epiderme vasculhando o ponto focal de onde poderia vir a observação que me abarcava completamente. Eram úmidas. Nelas haviam pelos eretos, de raízes inchadas, tão logo arrancadas pelo ancinho amolado feito de dedos carentes e curiosos. Forjando trincheiras e valas no decorrer dos rumos instáveis do território humano, como as pegadas de larvas vulcânicas na Terra.

Em seguida, sentei-me no chão, repousei as costas na porta trancada e relaxei as pernas e os braços ensanguentados, em posição de cansaço.  Sem demora, esparramei-me à frieza do piso pavimentado de sujeira, lágrimas e sangue. Minhas pupilas expandiram-se e os olhos eram dois grandes faróis abertos à espera de mais um ataque iminente. Dali, encarei o mundo de céu castanho-escuro alojado em minha visão. 

Com a espinha dorsal aterrissada no meio ambiente da Terra, minhas costas latejavam com os socos musculares do magma a bombear-me larvas nas veias a partir do centro dorsal. Tudo ardia de ponta-a-ponta e uma febre intensa circulava pelos intestinos. Em consequência, berrei de dor na barriga, não mais mero repositório de órgãos mecânicos e funcionais, mas exigida, desta vez, a dar conta de sentimentos arregalados no interior das vísceras.

O corpo recusava compartilhar sua natureza com aquela eclosão sinistra, seu fundamento era outro, por isso a dor era protesto natural contra qualquer intervenção potencialmente capaz de alterá-lo. Condicionado a isso, debati-me violentamente contra a superfície dura do chão. Os ossos vibraram, os membros tortos, músculos eriçados em guerrilha. 

Chocando-me ao solo, mãos e pés dobraram-se em sofrimento, como caramujos que se contorcem quando atacados por sal; e a língua, tesa entre dentes espremidos para não ser engolida. Enquanto isso, cada piscada dos olhos castanho-escuros geravam ondas no oceano das paredes azuis do quarto. Convulsionando plenamente, as espumas do mar saíam-me das salivas acumuladas em horas malditas, nas quais a boca deslocada e o rosto em pânico avisaram a absolutamente ninguém o que acontecia comigo. Somente a mim.


/////


Rhavi, estrebuchando no assoalho, sentia seu universo se expandindo e acompanhava o processo com as mãos de palmas altamente aguçadas, com a qual estabelecia rampas entre ele e a realidade, rompendo cercanias. Usava-as mais ainda quando tinha medo e então forjava situações para distrair-se. Naquela circunstância, as lâmpadas do modesto dormitório não haviam sido acesas, nem urgia a procedência disso, dado que as mãos eram tochas vivas.

Ele não sabia se apreciava os seres irresistíveis das zonas abissais, que passavam no oceano das paredes azuis, ou se voltava-se, atenciosamente, à sensação de estar na mira constante de seu captor, uma vez que poderia abatê-lo a qualquer momento, por isso não podia baixar a guarda.  

Os olhos vesgos eram binóculos fantásticos; túneis presos ao rosto possibilitando que somente ele visse a transcendência da natureza das coisas em seus bastidores absurdos, ainda em formação. A mão era seu melhor armamento diante da presença inimiga; verdadeira estrela mãe que lhe saltava do cosmo criado a partir do alinhamento de uma à outra. Além disso, era lanterna com a qual edificava sua defesa em qualquer lugar. Trazia o mundo para junto dele e arredondava sua aproximação, tornando-o um satélite natural. 

Do piso, e surrado, Rhavi empinou a cabeça em pausas dolorosas até conseguir estabilizá-la na direção das batidas que, subitamente, começaram a estremecer a porta do cubículo em que morava. Viu, através das aberturas entre as tábuas, sombras de passos movimentarem-se rapidamente de um lado para o outro, ao mesmo tempo, barulhos similares a marretadas explodiam na superfície dura a ponto de se despedaçar.  A porta reagia com estrondos e estalos cada vez mais agudos, como efeito, as dobradiças se afrouxavam do caixote em sua lateral. Do outro lado, alguém girava a maçaneta freneticamente. 

Rhavi apoiou suas costas nas pernas da mesa de refeição e escorou-se nela para levantar-se, gemendo o corpo debilitado por inteiro, sem forças para gritar proporcionalmente ao tamanho da dor de ser um organismo amplificado. Sentia-se um espantalho híbrido, tão abatido quanto à porta, única fronteira entre ele e seu caçador. “Judiou da presa e agora é o ataque derradeiro”, pensou, tentando fixar seus olhos cambaleantes à porta prestes a desabar. Veio-lhe uma avalanche de calafrios e ondulações na pele, como se ela própria fosse a porta espancada por toda a noite; e ele, a pessoa a bater nela do lado de fora, em desespero por saber que a criatura estava dentro, enclausurada.


FIM


sábado, 11 de abril de 2020

Cotidiano biodegradante
Daniel Lima
10.02.20

O sono custa encontrar seu lugar de direito em mim durante a semana inteira, porque inteiramente estou apegado às tarefas do dia seguinte, precipitadamente. A impressão de meu retrato diário sugere alguém vivendo em um mundo que transformou o cotidiano numa máquina biodegradante a agir sobre o humano, abocanhando-o e decompondo-o: extrativismo da vitalidade do corpo e das fibras humanas!

Os vizinhos, as redes sociais e os telejornais comemoram o dia de hoje: sexta-feira!, isso quer dizer que…sextou! No dia de hoje, pensar na segunda-feira é considerado um crime contra a humanidade, porque agente sente que, em verdade, é a retomada do cotidiano biodegradante - gerador de energia, que dá folgas, feriados, finais de semana, pois o trabalho do homem também é matéria-prima esgotável!

Diante de mim: o café de todo dia. Tomo um gole e me deparo com um céu desagradável, encoberto de nuvens sobrecarregadas, exibindo-me suas brechas desanuviadoras em algumas poucas partes, revelando meu estado de espírito e corpóreo, também enfadado de sentimentos nebulosos e amparando-se em um eu de delicadas rachaduras...

Existe a autodestruição ou a bem da verdade trata-se de uma febre aguda causada pelo cotidiano biodegradante  quando está em nós e nos move de segunda à sábado ?

Sei que meu corpo reage involuntariamente, e então arfo pelos instantes abertos da natureza à procura de respirar pelos olhos, de ressignificar-me, seguindo apenas este instinto inextirpável de bicho da linguagem. Nesta busca, os sentidos que tateio provêm de abraços violentos dados a mim e de olhos arregalados às coisas ofegantes e ainda possuidoras de cor.

São 07 horas da manhã desta tão aguardada sexta-feira. Sinto a luz do sol espremer-se quando transpassa pelo céu de espaços estreitos, tal qual meu esforço, porém por outra via, de enxergar a paisagem ensolarada por cima das nuvens de meu inverno amazônico-existencial. "É uma miragem do avesso de mim", penso.

Sacudo em círculo o copo de café e  acompanho uma nuvem imponente e profunda passar, trazendo consigo um marrom insuportável de si, um ar pesado e abafado, como se, igualmente a mim, estivesse prestes a desembuchar suas entranhas, qual minha vó fazia com as tripas dos porcos após abatê-los: desvirava-os para livrar-lhes de seus dejetos e cozê-los em seguida a fim de sossegar o estômago faminto de sentido.

Se não consigo alcançar traduções possíveis às minhas circunstâncias escabrosas, em que  desabo a cada respiração dificilmente realizada e caio ao socorrer-me, porque me desamparei de mim mesmo, somente os acenos da natureza podem sugerir alguma ruazinha onde me fui deixando na ânsia de ser alguém na vida. Olho em volta e cada passo de nuvem arremeda meu coração a pulsar pesado conforme me sente...

O tempo urbano bombeia um bando de pedestres numa taquicardia generalizada em obediência ao convívio biodegradante. Mas, "sextei" novamente. Já se aproxima, então, o agasalho de um silêncio revigorante, existente nos intervalos entre um vento e outro, entre uma folga e outra; nas  aberturas entre um passo e outro, entre uma respiração e outra. Quando não, a sensibilidade decresce e não se cata os prazeres porque cansou-se demais para sentir. Se o que se sente não nos faz retomar o movimento que desperta, reforça e nutre, não se estar sentindo, se estar sendo subtraído além da conta!

Por agora, vivo numa manhã de sexta-feira.Talvez seja por isso que tusso com algum esforço e arroto choros engolidos noutros dias e em noites embuchadas de afazeres ordinários. Talvez seja apenas eu. Eu, tentando expulsar um corpo estranho!

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Estrelas (de)cadentes

O verbo espoca-se feito camapu na boca da noite, a língua brada e o palavrão risca o céu de estrelas
(de) cadentes.

Horas mal ditas pelos poetas
da contemplação, assassínios da verdade, rompidas vide a insurreição das pregas da palavra
ao cuspir o pigarro que eles engolem para não perturbar a nostálgica aparência das coisas;

Vide o derramamento dos sentimentos
Há muito acumulados nos bueiros da existência e tapados pela tampa da rolha moral, fétida com o bafo do lobo do homem.

São dias de chuvas: o canal do beirol é mais alguém a desabafar suas secreções. Enquanto isso alguém comete a blasfêmia de tecer poemas sobre o pôr do sol, não vês que é um engodo a te encarcerar nos olhos?

Há que se falar que a boca do dia fede
E há remelas nos olhos das flores!

Sem nenhuma papa na língua,
o papo é furado e vês-se que a poesia está  papuda: s(a)cuda, s(a)cuda, s(a)cuda, s(a)cuda...

Daniel Lima.
09.12.2019.
O barco e a maresia

O vento soprava revoltante
O extenso rio que ali havia
Formando a temida maresia
Que assustava o navegante.

Mas o barco a encarava
E com destemida bravura
Se mantinha e navegava
Sobre a perigosa aventura.

Entretanto, a forte maresia
Com mais força o agredia,
Que o barco não suportou
A água brava e naufragou
Na largura de instantes gêmeos.

Daniel Lima
26.01.2016.
Flor de rua

Sob a brisa fina da manhã, eu por ti passei
E vi o que a visão humana é incapaz de ver,
Vi com o olhar do coração tua forma de ser.
Que se mostrava para mim quanto te avistei.

Enquanto te olhava, os pássaros enfeitavam o céu
E tu enfeitavas a terra, esplêndida flor de rua!
Quando te vi, encantei-me com a singeleza tua
Que tocava inexplicavelmente o coração meu.

Olhava-te absorto, fitava-te com admiração
E sentia a irradiante beleza de tuas pétalas
Que me invadia por completo a tua exalação.

Magnífica flor, eu simplesmente te sentia
Quando o vento realçava tuas singelas pétalas,
Emanando no ar tua doce poesia.

Daniel Lima
07.07.2015.

Soneto de paixão

Meu coração tem o rastro que deixaste
Quando outrora, por mim, passaste.
Vieste bonita, mas impetuosa e fugaz
Como a ação do vento sobre as rochas.

Tu duras enquanto somos bonitos.
Pois, tu outrora foste intensa,
Desmedindo sensações por imensa,
Defez-se na carne velha do sujeito.

Tu que é tão passageira nas histórias
E duradoura apenas nas memórias
Que somente como algo breve a vejo.

Por tudo eu não mais te almejo!,
Para a convivência pretendo ao amor
Que desabrocha no tempo, como a flor.

Daniel Lima
10.09.2015

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Se me olhares

Se me olhares,
peço que me escolhas
pela moita que faz
as folhas dos meus
cabelos.

Pois, em cada curva,
há grelos enrolados
em meus galhos apaixonados. 

Não te vá trepar nas árvores
de cabelos lisos. 
Estão escorregadias
nos dias de hoje.
Se fores, serás apenas 
chuvas para elas.

Eu, sim, com a minha moita,
posso te aparar na fibra
de meus cachos;
caso tu me caia de repente,
te darei agasalho permanente.

Assim, te abraçarei
em minha negritude que floresce
nas folhas do meus cabelos
libertos.

Faço-te saber, amado:
minha moita te acoita
por inteiro, decerto;
tem grelos de paixão em cada
curva de mim, para ti.

Daniel Lima
Coração de terra

Há tempos que não consigo plantar
uma flor que seja em meu coração,
nada é mais como aquela vastidão
sublime que um dia existiu neste lugar.

Reviro a terra a fim de plantar a flor
que, se germinar, a chamarei de amor,
mas os dias passam e nada acontece
e a esperança aos desaparece.

"Não entendo", esta terra já foi fértil!?
Era habitada por grandiosas árvores
e rodeada por esplendorosas flores.

Mas, agora, é um lugar totalmente hostil:
um atoleiro nefasto capaz de sufocar
qualquer flor que aqui se tente plantar.

Daniel Lima
Terapia Poética

Catalogando versos de ressentimento
o poeta jorra o sentimento na folha
a tirar do coração a rolha 
que por sóis e luas tamparam-no o alento.

Não há tinta de caneta que suporte
tantos registros de amargura e tormento,
de um coração num sofrimento
mais arrebatador que a própria morte!

Não dorme à noite ao abrir os olhos da alma
e, em minúcias e sarcasmos, revela o trauma,
pois, quando o coração está cheio, transborda

Lágrimas da desilusão que recorda.
Em murmúrios de desabafo acalma a alma,
e poeta, vezes triste, vezes alegre, vivalma!

Daniel Lima

sexta-feira, 19 de julho de 2019

A poesia é bicho arisco e carrapicho!

Tudo está quieto,
mas ouço uma folha
esfregar-se em outras:
chocalho de árvores,
maracás frondosos
e esverdeados!

Tudo está dormindo,
mas eu sequer cochilo,
o pensamento corre
de um lado para o outro,
oras no passado,
oras no futuro,
a me embolotar o presente
com as linhas do tempo
que me cruzam, agora,
na avenida da vida
que se aponta na
quietude das horas.

Amanhã é segunda-feira
e estarei em segundo lugar
na vida que sinto agora
prenha de mim.

De vez em quando,
quando me dou a vez
de esmiuçar a partida da qual
me vou para correr no trecho
das ruas de Macapá, porque
preciso ser  alguém na vida,
me tenho e me esquivo,
sou para mim uns trocados:
tostões de gente!

Há de haver algum recinto em que
a minha existência seja inteira?
Não faço ideia, só produzo!

Sei que ralo um palavra na outra
para ver se me enxergo.

De quando em vez
é a minha vez de me pegar,
ainda que a poesia seja um bicho arisco,
esquivo, sáfaro!

Mas é também um belisco,
fuxico da vida querendo aparecer,
cochicho dos dias sobre o fulano...

A poesia é carrapicho, seco do sol,
espinhoso de espanto,
que de vez em quando
se agarra na gente, espeta o corpo
e tu se sente!

Daniel Lima




segunda-feira, 1 de julho de 2019

Crônica do coração

Ocorreu-me, nesta calma manhã, a percepção de que, por muito tempo, a vida enveredou-se em seu curso e eu fiquei à beira de sua margem, a olhá-la passar. Mas hoje, depois de tanto tempo em que se sucedeu sem mim, pousaram às janelas de casa pássaros tão aprazíveis que cantaram inebriantes canções. Em resposta , outra canção, que há muito me vinha esquecida, vibrava-me por dentro a suscitar-me resmungos  que, em seguida, saíam-me em áspera e rouca melodia, de modo a espantar-me, pois há muito estive em silêncio em meio a lembranças que só me serviram de açoite ao coração e às miúdas porções de esperança que lhe faziam bater. Assim, em retruque à canção dos pássaros, meu coração dedilhou suas veias e arranjou nos acordes arteriais o toque de um novo sentimento, embora fosse choroso o canto que lhe saía da pele incrustada em calos em detrimento das agruras pelas quais passei. De tudo, o mais extraordinário foi ouvi-lo cantar outra vez, posto que, por tão calado, quase esquece de pulsar.

Daniel Lima


  O MENINO RHAVI Era mais uma noite que eu tinha de enfrentar espasmos horripilantes e insônias eternas. Porém, naquela ocasião os meus sent...