sexta-feira, 17 de maio de 2019



Qual rua te diz?

Em mim, topo muito com a Claudomiro,
Sobretudo nestes tempos em que minha esperança brasileira
Encontra-se esburacada em meio à tanta sujeira
Nas poças de lama pelas ruas de Macapá,
A me quedarem sempre ao levantar o olhar ao horizonte do meu Amapá brasiliense.
Diante desta paisagem, me azucrino e peço a vocês que me deem as mãos,
Para que eu não deixe meu olhar se pôr no horizonte
Das palavras sem água, dos caminhos acostumados, das cores silenciadas.

Quando vejo a reação da Planaltina diante da tragédia sudestina,
Me ocorre que a barbárie, a qual murchava o olhar de Rosa Luxemburgo
À humanidade, virou moda!

Há na Claudomiro uma esquina perigosa da história para gente como eu,
Que engana o cotidiano para permanecer e enrola, muitas vezes,
Os fios da purpurina dentro de si.
Tô falando da Travesti e do cidadão de bem, que ficam a tecer ladainhas santificadas
Por todo o ventre em plena erupção do deserto da noite.

As ruas são o palco dessa gente cuja voz é engasgada pelo açoite do cotidiano
E pelo assassinato em razão do desamparo civil.
Mas que os brutamontes desta carnificina adoram adentrar profundamente
O criminoso nato numa sacanagem a gemer pelos séculos.
Por isso eu declaro guerra a toda opressão e à moralização que dite como devo usar
As ruas que me passam: entradas, saídas, becos e encruzilhadas.
Meu corpo não é asfaltado por esta moralização hipócrita e fedida
Com o sangue da minha viadagem!

Deixo-me trafegar pelos transeuntes que eu quiser…
Deixo-me trafegar pelos transeuntes que eu quiser…

Qual rua te diz?
Eu estou tomado pelo meio-fio da Claudomiro,
Lá onde a polícia faz o baculejo durante a batalha de Rap,
Que preenche a ausência de intervenção social com a agudeza das rimas livres,
Não metrificadas,
Dizendo que minha nação às avessas cospe mundo a fora a realidade
Vivida pelo meu povo, cuja crença de dias fartos em nossa mesa só emagrece.
Tudo isso frente a uma governança que destroça, torce e retorce, como roupa,
A alma e espreme, suga o trabalho, mas, arregaço o verbo e lhes digo:
Não me fazem um bagaço, porque minha pele é re.sis.ten.te!
Os calos engrossados nela me deixaram cascudo de esperança!
Por isso sou carrancudo que nem o Congós, o Muca, o Perpétuo-socorro,
As Pedrinhas e o escambau. Sabe por quê?
Porque a gente entende, desde pequeno, que a voz da periferia
Tem que ser furadeira dos muros de todos os dias!

Seguirei andando.
Descendo e subindo as ladeiras da minha amada cidade,
Da Macapá que sou: esburacado, cheio de ladeiras, meandros e depressões.

Autor: Daniel Lima

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Em poucas linhas

Na sociedade onde (sobre)vivo
sou mais um meio ao consumo,
pois me tiram todo o sumo
como se os dias me fossem crivo
pelos quais rotineiramente passo
neste ir e vir já antes desenhado.
De tanto que me espremem
sou, ao final do dia, muito escasso
em me querer, de tão explorado!
É assim que eles me resumem. 
Eu poderia alargar o meu valor
e ser mais que um mero trabalhador
porém, neste lugar, eu apenas valho
a minha força de trabalho.

Daniel Lima
A diarista

Todo dia, a labuta diária
na luta pela sobrevivência
lhe sequela tão logo a vida
que, como pele em piçarra,
se esfarela, ferida,
torna-se apoucada, feia,
de tanto demorar-se na panela
e no chão da casa alheia;
tanto é que só à tardinha,
quando à sua casa regressa
é que, enfim, a sua vida começa.

Daniel Lima

Andarilho solitário (crônica)

À primeira vista, a rua estava completamente deserta, de modo que se escutava somente o sopro esfuziante do vento varrendo a poeira, balançando os arvoredos e misturando-se à fragrância das flores. O céu, ao contrário da rua, estava no seu ápice, pois a lua encontrava-se plena e as inúmeras estrelas brilhavam solenemente.

O transcorrer daquela noite me era convidativo. Espantava de mim o sono que, por vezes, me faz perder um tempo precioso desta vida fugaz, proporcionando-me, com isso, significativo deleite frente aos primores da natureza enquanto a cidade dormia. Naquele instante, portanto, não havia para mim sensação igual.

De súbito, meus olhos se exprimiram estupefatos, o coração pulsava em ritmo acelerado. Para mim, a noite não era mais a mesma diante do que vi. Meus olhares consternados acompanhavam a lentidão dos passos de um homem que passava a esmo pela rua, cuja aparência me permitia ter várias interpretações em deduzir as causas que o levaram àquela situação deplorável.

Saí da janela de onde eu estava observando, às pressas. Dirigi-me à cozinha e peguei um pedaço de pão com o intuito de me aproximar do morador de rua e oferecer-lhe o alimento, a fim de saciar a fome que lhe corroía o estômago. Naquele instante, vinha-me um demasiado espanto em concluir que os andarilhos solitários esbarram por nós cotidianamente e no entanto não os percebemos como pessoas de valor. Onde então, eles aparecem com gente?Acaso vivem soterrados por debaixo do tapete onde pisamos ?

Abri a porta ligeiramente, caminhei até a rua em passos apressados, nem calcei os chinelos para não perdê-lo de vista. Ao pisar no chão, senti de imediato a umidade causada pelo relento à superfície terrestre, pois os meus pés logo se molharam com as gotas de orvalho sobre a relva. Comecei a segui-lo com os devidos cuidados para que ele não pudesse me ver. Afinal, eu estava receoso.

De longe o vi sentar-se na calçada de um comércio e fui ao seu encalço. Por minutos, porém, fiquei a espreitar-lhe o comportamento, quando decide de vez ir ao seu encontro. Então, lhe ofereci o pedaço de pão, ele o pegou de minha mão sem olhar-me o rosto, um tanto desconfiado, reação esta que já esperava de uma pessoa que vive exposta às mazelas das ruas. Aproveitei o momento oportuno para inquirir algumas perguntas, mas ele silenciava. Aliás, estava com a boca cheia, de modo que devorava o alimento como quem não se alimentava há dias. Diante daquela cena meus olhos embaçaram e as lágrimas rolaram até se estatelarem sobre o chão. Enxuguei o rosto e o fitei novamente, ele olhava sem ter um ponto fixo que pudesse lhe orientar a visão. Seus olhos eram tão úmidos quanto o relento sob o qual fazia morada. O semblante lívido, de pouca saúde, emanava uma tristeza profunda, como quem já morrera por dentro. Dispunha-me, naquele momento, a deduzir que a vida não lhe surtia mais nenhum sentido e a única motivação que lhe empurrava as pernas debilitadas, em detrimento das penalidades da vida, era procurar tão somente um singelo cantinho para se meter com a sua miséria.

Autor: Daniel Lima

  O MENINO RHAVI Era mais uma noite que eu tinha de enfrentar espasmos horripilantes e insônias eternas. Porém, naquela ocasião os meus sent...