sábado, 11 de abril de 2020

Cotidiano biodegradante
Daniel Lima
10.02.20

O sono custa encontrar seu lugar de direito em mim durante a semana inteira, porque inteiramente estou apegado às tarefas do dia seguinte, precipitadamente. A impressão de meu retrato diário sugere alguém vivendo em um mundo que transformou o cotidiano numa máquina biodegradante a agir sobre o humano, abocanhando-o e decompondo-o: extrativismo da vitalidade do corpo e das fibras humanas!

Os vizinhos, as redes sociais e os telejornais comemoram o dia de hoje: sexta-feira!, isso quer dizer que…sextou! No dia de hoje, pensar na segunda-feira é considerado um crime contra a humanidade, porque agente sente que, em verdade, é a retomada do cotidiano biodegradante - gerador de energia, que dá folgas, feriados, finais de semana, pois o trabalho do homem também é matéria-prima esgotável!

Diante de mim: o café de todo dia. Tomo um gole e me deparo com um céu desagradável, encoberto de nuvens sobrecarregadas, exibindo-me suas brechas desanuviadoras em algumas poucas partes, revelando meu estado de espírito e corpóreo, também enfadado de sentimentos nebulosos e amparando-se em um eu de delicadas rachaduras...

Existe a autodestruição ou a bem da verdade trata-se de uma febre aguda causada pelo cotidiano biodegradante  quando está em nós e nos move de segunda à sábado ?

Sei que meu corpo reage involuntariamente, e então arfo pelos instantes abertos da natureza à procura de respirar pelos olhos, de ressignificar-me, seguindo apenas este instinto inextirpável de bicho da linguagem. Nesta busca, os sentidos que tateio provêm de abraços violentos dados a mim e de olhos arregalados às coisas ofegantes e ainda possuidoras de cor.

São 07 horas da manhã desta tão aguardada sexta-feira. Sinto a luz do sol espremer-se quando transpassa pelo céu de espaços estreitos, tal qual meu esforço, porém por outra via, de enxergar a paisagem ensolarada por cima das nuvens de meu inverno amazônico-existencial. "É uma miragem do avesso de mim", penso.

Sacudo em círculo o copo de café e  acompanho uma nuvem imponente e profunda passar, trazendo consigo um marrom insuportável de si, um ar pesado e abafado, como se, igualmente a mim, estivesse prestes a desembuchar suas entranhas, qual minha vó fazia com as tripas dos porcos após abatê-los: desvirava-os para livrar-lhes de seus dejetos e cozê-los em seguida a fim de sossegar o estômago faminto de sentido.

Se não consigo alcançar traduções possíveis às minhas circunstâncias escabrosas, em que  desabo a cada respiração dificilmente realizada e caio ao socorrer-me, porque me desamparei de mim mesmo, somente os acenos da natureza podem sugerir alguma ruazinha onde me fui deixando na ânsia de ser alguém na vida. Olho em volta e cada passo de nuvem arremeda meu coração a pulsar pesado conforme me sente...

O tempo urbano bombeia um bando de pedestres numa taquicardia generalizada em obediência ao convívio biodegradante. Mas, "sextei" novamente. Já se aproxima, então, o agasalho de um silêncio revigorante, existente nos intervalos entre um vento e outro, entre uma folga e outra; nas  aberturas entre um passo e outro, entre uma respiração e outra. Quando não, a sensibilidade decresce e não se cata os prazeres porque cansou-se demais para sentir. Se o que se sente não nos faz retomar o movimento que desperta, reforça e nutre, não se estar sentindo, se estar sendo subtraído além da conta!

Por agora, vivo numa manhã de sexta-feira.Talvez seja por isso que tusso com algum esforço e arroto choros engolidos noutros dias e em noites embuchadas de afazeres ordinários. Talvez seja apenas eu. Eu, tentando expulsar um corpo estranho!

  O MENINO RHAVI Era mais uma noite que eu tinha de enfrentar espasmos horripilantes e insônias eternas. Porém, naquela ocasião os meus sent...